SOBRE PRECONCEITOS, CONSCIÊNCIA NEGRA, OBAMA E OUTRAS COISAS AFINS
Este artigo foi escrito a quatro mãos. Em luxuosa parceria com o poeta publicado, blogueiro e pensador Pedro Geraldo Carvalho Silva, ilustre cidadão londrinense que, para nosso prazer, desfila seu talento em terras paulistanas.
"A vida não é cor-de-rosa!" desabafou a atriz global e 'gente de bem' Carolina Dieckman, 30 anos, que resolveu dividir esse achado com o seu público. "O mundo tá puxado e as pessoas tem problemas", observou a estrela que 'já passou fome' há pouco para perder 29 quilos extras, ganhos em sua segunda gravidez. "Infelizmente o Lula se elegeu e o país não melhorou". Ela, que não votou nele, até chorou quando o viu subir a rampa no Planalto. Tocantes declarações.
A Internet é uma invenção interessante. Faz circular milhões de informações por segundo. Coisas atraentes, inteligentes. Coisas curiosas. Entre elas essa citada anteriormente. Mas, há ressalvas: dá para também se sentir muito da ignorância, do preconceito camuflado do cidadão em inúmeros e-mails que chegam às nossas caixas de mensagens diariamente. Bastante coisa. É uma referência significante.
Em várias ocasiões, o mau gosto e a falta de decoro impera. E, infelizmente, parece ser conduta da população em grande proporção. Daí a conclusão: o problema deste país é falta de educação. Porém, falta educação de verdade, não essa só para fazer de conta em estatísticas. Falta ética, falta pensamento crítico. É um bombardeio de palpites e saber nada. Pior: repleto de agressões. Aí, por exemplo, tome e-mails contra o Lula, grande culpado das desgraças mundiais, desde o êxodo bíblico até a o buraco do metro na linha amarela em Sampa. O 'analfabeto', o 'nove dedos', o 'líder da quadrilha' etc. Quem não recebeu já um calhamaço virtual de textos assim pela net?! Se a educação de S. Paulo é um caos, a saúde não salva, a segurança é inexistente e o trânsito é um porre, o responsável é aquele pernambucano albergado em Brasília que cortou o mindinho para não trabalhar mais e viver no sindicato mamando numa aposentadoria. Um dos outros alvos da ocasião ainda é a ex-candidata a prefeita paulistana, Marta Suplicy. Arrogante foi o mínimo das considerações indo a graduação até safada, passando por frustrada e vadia, para usar termos mais brandos. Coisa fina, não é mesmo? Porém, um e-mail que causou ânsia foi atribuído ao jurista Yves Gandra Martins. Grande sucesso nas 'reproduções' de envios de e-mails nesta semana. Claro, diga-se, com a óbvia desconfiança da verdadeira autoria dos textos da internet, como já reclamaram Luis Fernando Veríssimo e Arnaldo Jabor, entre outros "autores" falsificados. Precisamos estar atentos, tomar cuidado. Todavia, o conteúdo é revelador desse pensamento preconceituoso que emerge na rede.
O tal texto atribuído ao jurista segue na linha da 'conspiração', uma que faz muito sucesso no correio virtual, só notar os múltiplos repasses. O argumento fala de uma classe que, no momento, está sendo lesada em seus direitos. Por quê? Por serem 'brancos'. Cá para nós, uma gente desfalcada de opções que dá mesmo dó. 'Tadinhos. O título do artigo é, exatamente, assim: "Se Você É Branco, Cuide-se!". E versa sobre como indígenas, sem teto, sem terras, negros e outros sem-vergonha têm tomado espaço dos brancos oprimidos, nesta sociedade tropical, a sociedade brasileira.
O texto pode não ser mesmo do jurista, mas, ele é um dos signatários do manifesto anti-cotas que circula no Congresso Nacional, querendo eliminar a questão da "raça", na inclusão universitária, entre outras coisas. Sem essa de reparação: isto é racismo às avessas, vociferam. O interessante é a posição sempre de protesto da sociedade e principalmente de gente que sequer conhece metade das histórias e do drama que é ser 'não branco', numa vida social que prefere jogar tudo por debaixo do tapete. Passar odor de rosas ao invés de tomar um bom banho. Aliás, na segunda metade do século XIX 'gente de bem' como Nina Rodrigues, da Medicina da Bahia, e Sílvio Romero, da Escola de Recife, se arrepiavam com 'as mazelas da miscigenação racial'. Plenamente envolvida por um darwinismo social dra. Nina defendia a existência de dois códigos no país - um para negros, outro para brancos - correspondentes aos respectivos 'graus de evolução' apresentados por esses grupos. Ninguém pergunta se os negros vieram para cá por opção própria, dar um passeio, fazer um convescote. Isso não importa?
Sem muito esforço de se necessitar ir até uma biblioteca e ler Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Otavio Ianni ou Lilia M. Schwarcz, entre outros – conselho este, direto, para os mais preguiçosos –, é só acessar pela internet recente pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) para se ter uma idéia mais precisa da questão. Confirmar o óbvio, para quem quer enxergar. Negros e pardos têm renda per capita equivalente a menos da metade da renda dos brancos. Na educação, fundamental para a formação do indivíduo, segundo pesquisa publicada em setembro pelo IPEA, negros e negras estão menos presentes nas escolas, apresentam médias de anos de estudo inferiores e taxas de analfabetismo bastante superiores. Conforme explica um dos diretores do órgão, Mário Theodoro, qualquer que seja a variável que se está estudando, a população negra está sempre mais precária do que a média nacional, ou seja, a população branca. Sempre temos este mesmo resultado. Um abismo social. E, mesmo com igual escolaridade que os brancos, 'os não brancos' são preteridos nas vagas de empregos ou promoções. Contudo, o quinhão é grande e tem muita gente de olho. Qualquer manifestação de melhora de 'uns diferentes' deve ser rechaçada. Uma gente que deve tomar 'seu lugar', leia-se: a senzala. Viva a igualdade da livre concorrência. Esses pretos, pardos e degenerados querem paternalismo. Cotas no lixo já!
Quando caiu o muro de Berlim um sociólogo argumentou que o Brasil nem sempre experimenta as correntes sociais que regem o mundo. Especialmente, acrescentaríamos nós, as mais progressistas. Para ter um Obama como presidente nos EUA, muito disso só foi possível por conta das tais 'ações afirmativas', que deram para alguns negros a chance de se mostrar capazes. Aqui isso já gera uma grita geral. Como se fosse o fim do mundo ver a melhoria de vida de outras pessoas. Afinal, de acordo com o jornalista Ali Kamel, diretor executivo da Rede Globo, mesma emissora da sábia Carol Dieckman: não há racismo neste país, afirma ele taxativamente e sem ficar ruborizado. E ponto. Tudo em nome do bom andamento do status quo.
Falta senso de cidadania por estas bandas, coisa que só se consegue mesmo, repetimos, com educação. E argumentos desse tipo no país surgem camuflados em falas, quase num chiste. Piadinhas. Uma forma perigosa de repressão, uma doença mortal e silenciosa mesmo. Que toma conta quando menos se espera. A 'gente de bem' não esperneou quando o PROER injetou dinheiro para ajudar os banqueiros. Ou quando se constata que o gasto com os juros dos títulos públicos – que não são ativos de negros, pardos e outros afins – queimou entre 2000 e 2007 um total de R$ 1,2 trilhão enquanto os recursos aplicados em educação e saúde juntos somam meros R$ 554,6 bilhões. Ou ainda que os 10% mais ricos do país concentrem 75,4% da riqueza (IPEA/2008). Vieram com a história do 'Cansei' quando houve atraso nos aeroportos... Ônibus lotado, falta de água e esgoto na periferia, isso não mobilizou os bacanas. Aqui, o senador de Illinois, Barack Hussein Obama, talvez fosse eleito deputado ou, quando muito, senador. Temos um ministro negro no STF, juiz Joaquim Barbosa. Mas, é difícil lembrar afro-descendentes em altos cargos de gestão. O que é diferente de fazer sucesso no disco, nos gramados ou rebolando em uma avenida. Aí pode. Também dá para ser síndico de condomínio.
Falando nisso, duas lembranças: uma de dona Benedita, dona de casa, católica fervorosa, recebendo a visita de umas vizinhas quando a família mudou para um conjunto habitacional na Vila Guilherme. Eram senhoras distintas que foram mostrar para a nova moradora, mãe de 3 moleques negros, como deveríamos nos portar no condomínio. Outra é de Chico Buarque. Quem teve o prazer de assistir aos documentários em dvds sobre sua carreira num certo momento fica triste junto dele, lógico, se não tem o coração gelado. Ele chora ao narrar como sua filha Helena e seu marido Carlinhos Brown, um preto baiano percussionista, foram expulsos de onde moravam. Ironicamente a 'gente de bem', escolada, esclarecida, vive pedindo autógrafo para o músico. Evidente, desde que não seja seu neighbour.
"Yes, we can", repetiu Obama em sua campanha. Como se veiculou isso por aqui. Lindo na tevê. Acenos de mão, bandeirinhas, fogos de artifício. Lacrimejante. Mas, ele é 'made in USA'. Na prática, na base do preto no branco, solidariedade aos negros brazucas, who cares? Só que o feriadão é bem vindo. Puxa, ah, isso é mesmo.
Para quem não jogou fora os neurônios, sigamos então no ritmo do "Samba da Consciência Negra" de Nei Lopes que diz: A gente precisa ter gente no andar lá de cima/ Mas não desse jeito/ sem jeito que a turma imagina./ A gente tem que ser modelo noutro figurino/ As damas no salto e os valetes/ no esporte fino/ Passando da área de serviço pro meio da sala/ Dizendo no pé e na mente/ no gesto e na fala/ E mesmo se for chamuscado ao por a mão no fogo/ A gente precisa aprender toda a regra do jogo. [...]/ Bonito é um povo mostrar a sua resistência/ Mas não de chofer ou de armário de S. Excelência./ Bacana é a gente gingar, mas no andar superior/ Naquele passo de chefe, magistrado ou senador/ E não é no afrodisíaco rap do logro/ Que a gente vai poder botar novas regras no jogo. Mas pra quê tanto tambor? Pra quê tanto berimbau? Não cabe no elevador... Ele é social! (bis - na cabeça!)
José de Almeida Amaral Júnior, 20 de novembro de 08, dia da Consciência Negra
José de Almeida Amaral Junior
Professor universitário em Ciências Sociais
Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação
Colunista do Jornal Cantareira – Vila Brasilândia, Zona Norte paulistana
Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada