Gostaria de escrever hoje sobre São Paulo assim como Gay Talese escreveu nos anos 60 sobre Nova York. Bem, eu poderia até tentar mas seria impossível. Porque o tempo não passa em vão. Retificando: mas eu poderia falar duma São Paulo que conheci na década de 60 que aí sim, seria possível adotar um ponto de vista semelhante ao de Gay Talese descrevendo NY como uma cidade onde as coisas passam despercebidas, NY e seus anônimos, NY e seus esquecidos, NY e seus personagens, NY e suas profissões estranhas – coisas, pessoas, locais, formas de vida, especificidades únicas, portanto universais.
Na década de 60, aos domingos, as famílias da pequena e média burguesia paulistana (como a minha) iam aos cinemas no centro da cidade:
Marrocos,
Metro,
República,
Ipiranga,
Marabá. Ia-se passear no centro velho da cidade, almoçava-se no restaurante
Leão do Olido na av. São João próximo à Praça do Correio, no
Papai na Praça da Sé, no
Carlino da Vieira de Carvalho, ao lado de
O Gato Que Ri no Largo do Arouche; no
Giordano da Brigadeiro Luis Antonio com Viaduto Maria Paula, no
Itamaraty (caríssimo este, juízes, promotores, advogados, a fina flor do Largo São Francisco), no
Guanabara do Anhangabaú, aliás tanto este como o
Brahma em plena Sampa (Ipiranga com São João) foram “revitalizados”, assim como o
Ponto Chic – onde inventaram o bauru – originalmente no Largo Paissandu. Já o
Sujinho, o
Morais, o
Bar das Putas são produções bem mais tardias ocorridas a partir de 70 – vigorava a moda de “ir ao povo”, segundo Roberto Schwarz, o intelectual engajar-se, Nara Leão & Zé Keti.
Mas essa época não vale, quero mais é lembrar a São Paulo da boate
Oásis, o
João Sebastian Bar, a primeira
Baiúca, o primeiro
Djalma: não eu, os lugares que
meus pais frequentavam. Estas são as memórias não ficcionalizáveis, aos 10 anos nossa cabeça é como uma tela em branco que tudo absorve tal como vem, sem retoques: sem emoções, sem pré-julgamentos, sem preconceitos - são memórias não retificáveis, inegociáveis: primeiras impressões duma São Paulo definitiva.
Porque a década de 60? Porque foi quando, ainda criança, lancei o primeiro olhar inteligente para fora de mim, em direção ao mundo exterior, e este devolveu o olhar em reconhecimento. É o equivalente mais próximo que tenho de “realidade” e “verdade”. Por isso tais lembranças são indeléveis. Brasília acabara de ser inaugurada, passar as férias no Guarujá era the must, especificamente no
Sobre As Ondas, acabavam de sair as primeiras kombis – meu pai tinha uma verde e branca e dois fuscas – ocorria Jobim, Vinícius e os “óculos Ronaldo”, Aída Curi acabara de ser assassinada, São Paulo ingressava na modernidade ainda com um pé no passado, mixava bondes e cadilacs, a cavaleiro de dois tempos. (E papai era decorador de Jânio Quadros, Tutu e Pedroso Horta: entendem o que quero dizer? Memórias indescritíveis, inacreditáveis).
À nossa disposição, dois mundos, dois universos, daí a precisa compreensão do presente – por experiência e de fato, pelo que nos contavam e líamos e víamos simultaneamente – de como iria virar a História: o mundo era aquele lugar onde a gente se aventurava pessoalmente. Quando completasse 18 anos. Ou antes.
Li no blog dum escritor amigo, Nilo Oliveira, que é de Londrina, que sou a
única paulistana que ele conhece, não é engraçado? Para ele, todo mundo que mora em Sampa ou veio de ou vai para outro lugar, jamais é autóctone!Se este é um ponto de vista válido, deve ser porque Sampa não tem autoconsciência do próprio cosmopolitismo, seu universalismo, condição
“sine qua non” para ser única em todo mundo (atroz é o provincianismo burro da sua elite).
Voltando a Gay Talese: essa autoconsciência, NY mantém plenamente não só desde os anos 60, mas desde sempre: cada nova iorquino, um cidadão do mundo (não sei, mas pressinto que não tem muito a ver com o fato de ser o centro do Império, é terrivelmente outra coisa a que não sei dar um nome). Oi, Nilo, mas é isto que sinto por me saber paulistana, uma cidadã do mundo, daí sua impressão de eu ser a única. Mas nunca é tarde para esta porra desta cidade retificar um equívoco que já dura 456 anos. (Já o Mirisola não vale: é o provinciano mais mundano que eu conheço, um mix absurdo de genialidade e anarco-analfabetismo emocional, o cruzamento improvável de cigano com paulichão de chinelo, cruzes! Mas pensando bem, ele só seria possível em São Paulo)
E por esta – sobretudo esta, este provincianismo estapafúrdio – razão é que amo & odeio São Paulo ao mesmo tempo, os dois sentimentos convivendo maldita e abençoadamente dentro de mim - partes inseparáveis e constituintes deste universo - dilacerada estou eu entre os opostos. Problema meu.
Já o resto é periferia.
*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), A Ponte das Estrelas (1990), Toda Prosa (2002 - Esgotado),(2003,Ateliê Editorial, reedição), Caim (Record, 2006), Toda Prosa II - Obra Escolhida Diana Caçadora/Tango Fantasma (Record, 2008). É traduzida na Holanda, Bulgária, Hungria, Estados Unidos, Alemanha, Suiça, Argentina e Espanha (catalão e galaico-português). Dois de seus contos - O Vampiro da Alameda Casabranca e- foram incluídos nos 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, sendo que Hell's Angel está também entre os 100 Melhores Contos Eróticos Universais. Hell's Angel Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, é pesquisadora de literatura, jornalista e curadora de Literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.