sexta-feira, 26 de setembro de 2008

dança das idéias


por Guto Maia publicado no Overmundo

Idéias são dançarinas sensuais e caprichosas, que dançam tentando seduzir-nos. Uma a uma passam diante dos nossos olhos e roçam seus lenços sedosos e macios na nossa face, e insinuam-se e oferecem-se para que as sigamos, prometendo mil e uma noites de prazer num bambolear sensual.

Hoje elas vieram me visitar. Quando os primeiros raios de luz do dia riscaram minha cara, meu cachorro se aninhou melhor nas minhas pernas, mas ele já sabia que estava na hora, e que não ficaria muito mais tempo ali, no quentinho da coberta e do papelão.

Ele aprendeu desde pequeno que é assim todo dia. Bem cedinho, pego minha carroça, ponho em cima os badulaques, bagulhos e cobertores onde dormi, e saio pelas ruas do bairro em busca de tudo que possa ser reciclado. Grande companheiro, o meu cão. Chamo-o de “dog”, porque sei que dog é cachorro, em Inglês, por causa do “hot-dog”. Antes ele ia em cima da carroça, agora que cresceu ele vai do meu lado, andando. Mas hoje também tenho a companhia das dançarinas (que me aporrinham a cabeça!).

Olho a cena pela janela. Penso em voltar para a cama. Mas com certeza as idéias que me tiraram o sono, não me deixarão mais dormir, resolvo colocá-las no papel. Assim, ficarei livre delas pra sempre. Aí, começo meu trabalho. Cato um resto de palavras aqui, algumas rimas de versos de pés quebrados ali, alguns fragmentos de linhas mal traçadas descartadas acolá. Sobras de conversas, sorrisos amarelos, sentimentos embolorados, projetos esfacelados, esperanças perdidas, juras de amor desfeitas, frases que não foram ditas, tudo serve, culpas acumuladas. Tudo que possa ser restaurado. Tudo que eu conseguir juntar, alguém quererá um dia. Vivo dessas sobras, raspas e restos de sentimentos, lágrimas embotadas, corações partidos.

Mas as idéias, essas caprichosas aí de cima, do parágrafo anterior, são insaciáveis. Quando mais me desdobro, me descabelo, me esfolo; tanto mais elas me subjugam, e me flagelam, e me extasiam. Sou seu escravo. Seu escriba. Escrevo. Elas me detêem.

Eu, catador. Catador de sonhos recicláveis em forma de palavras. Ou, vice-versa. Minha contribuição para o mundo é essa. Dilacerando-me, como o pelicano de Victor Hugo, ajudo na purificação, purgação, penitência, expiação, sei lá... E isso me alimenta. Palavras me alimentam. Inclusive as que não foram ditas. E regurgito. Mesmo em pensamentos, e isso serve a alguém, que também se alimenta. Palavras em pensamentos são energia, portanto existem. Idéias são energia (e me aporrinham a cabeça!).

Algumas palavras, no entanto, não têm valor pra mim. Há pessoas que até tentam reciclá-las. Eu, simplesmente as dispenso: juízo de valores, preconceitos, rancores, mágoas, são palavras difíceis de serem reformadas. Como um vaso quebrado, é difícil torná-las reutilizáveis, a não ser como armas, que também não gosto. Quem anda armado, um dia vai ter que disparar, e no revide, uma palavra perdida certamente atingirá alguém que não tem nada a ver com o pato, que vai ficar marcado pro resto da vida... Agora fiquei com sono.